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sábado, 19 de julho de 2008

Solano Trindade, o poeta da resistência negra

por Michelle Amaral da SilvaÚltima modificação 17/07/2008 16:18

Contribuidores: Fábio Nogueira

Para Solano, a cultura negra traduz valores universais que, sem diluir-se no amálgama cultural brasileiro, refaz-se historicamente em forma de consciência crítica e transformadora da realidade social

Para Solano, a cultura negra traduz valores universais que, sem diluir-se no amálgama cultural brasileiro, refaz-se historicamente em forma de consciência crítica e transformadora da realidade social

17/07/2008


Fábio Nogueira


Em 2008 comemora-se o Centenário do nascimento de Solano Trindade. Já em 2007, entre os dias 21 e 22 de julho, o Teatro Popular Solano Trindade - liderado pela incansável Raquel Trindade (filha de Solano) -, em parceria com a prefeitura municipal, organizou um festival em comemoração aos cem anos de seu natalício. Esta homenagem deverá ser acompanhada de outras, em 2008, organizadas, sobretudo, por artistas, intelectuais e ativistas do movimento negro. Estamos todos instados a refletir sobre a importância deste artista que lutou a vida toda ao lado do povo e dos negros.


Quando refletimos sobre a poética-estética de Solano Trindade (1908-1974), observamos, de forma recorrente, os mesmos motivos que inspiraram o líder abolicionista e escritor Luis Gama (1830-1882): a afirmação de uma identidade rebelde do negro associada com a valorização estética e cultural dos valores afro-brasileiros.


Esta consciência negro-rebelde que tem em Luis Gama um precursor e em Solano Trindade um dos principais prosseguidores é, por outro lado, a mesma que embalou os sonhos de transformação do poeta moçambicano José Craveirinha (1922-2003) e do angolano Antônio Jacinto (1924-1991), para ficarmos restritos a África lusófona. Em termos históricos, estas manifestações artísticas e poéticas marcam dois períodos distintos da relação conflituosa de integração dos negros à sociedade Ocidental: o primeiro, aqui representado por Luís Gama, em que os negros se "erguem da escravidão" (meados do século XIX, auge das lutas abolicionistas, a 1888, com a abolição oficial); o segundo, no qual se inscrevem Solano, Craveirinha e Antônio Jacinto, inicia-se mais vigorosamente no pós-Segunda Guerra Mundial com o processo de descolonização do continente africano.


O ator, poeta e pintor Solano Trindade nasceu em Recife, em 1908. Era filho do sapateiro Manuel Abílio e da quituteira Merença (Emerenciana). Estudou no Liceu de Artes e Ofícios e nos anos 30 começou a escrever seus primeiros poemas. Em 1934 participa do 1º e 2º Congressos Afro-Brasileiros, em Recife e Salvador. Em 1936, funda a Frente Negra Pernambucana e o Centro de Cultura Afro-Brasileiro. Em 1940 transfere-se para Belo Horizonte/MG, Pelotas (RS) (onde organiza um grupo de cultura popular), e em 1941, após breve passagem por Recife, dirige-se à capital federal: o Rio de Janeiro. No Rio, o seu ponto de encontro com poetas, intelectuais, jornalistas e artistas é o Café Vermelhinho. Ingressa no Partido Comunista Brasileiro (PCB). No início dos anos 50, Solano, Margarida Trindade (sua esposa) e o sociólogo Edson Carneiro fundam o Teatro Popular Brasileiro (TPB). A proposta do TPB distinguia-se da do Teatro Experimental do Negro (TEN), fundado e liderado por Abdias do Nascimento. O primeiro tinha como foco a "cultura popular" e as suas manifestações artísticas e o segundo abriu espaço para a montagem de peças de autores estrangeiros, como O Imperador Jones, de Eugene O'Neill.


O trabalho do TPB foi apreciado por grupos estrangeiros a exemplo da Ópera de Pequim, a Cia. Italiana de Comédia, a Comédie Française, e por personalidades como Edith Piaf. Em 1956, Solano Trindade encenou a peça "Orfeu", de Vinícuis de Morais (que depois se transformou em filme por intermédio de Marcel Cammus). O ator Solano Trindade atuou nos filmes "Agulha no Palheiro", "Mistérios da Ilha de Vênus" e "Santo Milagroso". Também foi co-produtor do filme "Magia Verde" (este premiado em Cannes). O TPB realizou também uma turnê pela Europa e se apresentou na Polônia e Tchecoslováquia. Certa vez, o TPB veio se apresentar em São Paulo e Assis, um escultor do Embu, foi assistir ao espetáculo. Assis e Solano ficaram amigos e este o convidou para visitar a cidade de Embu, na região metropolitana de São Paulo, local que já abrigava artistas como Sakai e Asteca. Ao conhecer Embu, Solano se encantou com o clima da cidade e adotou-a como sua residência. Nela organizou festas, exposições e criou junto com Assis a feira de artesanato do Embu (semelhante à feira hippie da Praça da República, em São Paulo). Durante este período, em 1964, seu filho Francisco, preso pela ditadura militar, morre na prisão. Em 20 de fevereiro de 1974, na cidade do Rio de Janeiro, falece Solano Trindade, no Rio de Janeiro.


Entre os principais livros publicados por Solano estão Poemas de uma vida simples (1944), Seis tempos de poesia (1958) e Cantares do meu povo (1963). Em Poemas de uma vida simples está o seu poema mais conhecido, "Tem gente com fome", que foi gravado, em 1979, pelo grupo Secos e Molhados e interpretado pelo cantor Ney Matogrosso. "Tem Gente com Fome" lhe custou uma prisão e a apreensão dos exemplares do livro.


Neste sentido, a poética e o intenso labor artístico de Solano Trindade estão muito além do que se convencionou classificar, de forma pejorativa na maioria das vezes, de uma estética-poética "negra" ou "folclórica". O seu método era sintetizado na frase: "Pesquisar na fonte de origem e devolver ao povo em forma de arte". Ou seja, o papel do artista é o de defrontar o povo com aquilo que ele mesmo produz para que ele (o povo) se veja como sujeito criador de cultura e sentido para o mundo. Desta maneira, o artista cumpre o seu papel criativo de intérprete/desconstrutor da realidade e, ao mesmo tempo, se liga historicamente às aspirações e dilemas dos homens e mulheres do povo.


Para Solano, a cultura negra traduz valores universais que, sem diluir-se no amálgama cultural brasileiro, refaz-se historicamente em forma de consciência crítica e transformadora da realidade social. Em resumo: escutar o povo e traduzir a sua consciência em forma de poesia. Neste trecho do poema "Conversa" (Cantares a Meu Povo, 1963) o poeta coloca-se como um crítico à realidade dos negros sem, com isso, se arrogar o papel de "observador neutro" ou de "eleito" que fala assepticamente para "os de baixo", pois conhece a "verdade". Ao contrário, Solano, ao identificar-se com os dramas do negro, o faz como um negro, como parte, e é desta posição que lança o seu olhar crítico, em forma de poesia, às condições degradantes de trabalho e de vida do povo. Por isso, o poema é estruturado na forma de um diálogo e é através deste instrumento que se desmistifica a realidade presente:


Eita negro!

quem foi que disse

que a gente não é gente?

quem foi esse demente,

se tem olhos não vê...

- Que foi que fizeste mano

pra tanto falar assim?

- Plantei os canaviais do nordeste

- E tu, mano, o que fizeste?

Eu plantei algodão

nos campos do sul

pros homens de sangue azul

que pagavam o meu trabalho

com surra de cipó-pau

...


Em meu ponto de vista, este é um dos maiores méritos da "negritude popular" de Solano Trindade, como fazia referência o historiador Clóvis Moura (1925-2003): fazer esta síntese entre a consciência negro-popular – que é, em linhas gerais, o seu saber ser, provar e conhecer o mundo — e as aspirações de transformação e mudança social que sacudiam a alma do artista e poeta. Este fato torna a poesia de Solano mais leve, repleta de cores, sons, aromas e ritmos, sem abrir mão do comprometimento político de subverter a realidade.


Comparativamente, a poesia negra do final dos anos 70 e da década de 80 – a exemplo da poesia de Paulo Colina (1950-1999) e dos primeiros trabalhos de Cuti – é uma poética menos angustiada: a conflitividade não se concentra no "eu" negro que se descobre em um mundo que o sufoca e nega e, por isso mesmo, o faz se afirmar, mas em um "nós" negro que se encontra travestido sob diversas personas (o mulato, o trabalhador, o sambista) e manifestações culturais (afoxé, samba, maracatu, etc.).


Obviamente, a constelação histórica da "negritude popular" de Solano não é a mesma da encontrada por Colina e Cuti. Sem querer me alongar neste ponto, vale dizer que a percepção da cultura negra e a sua dimensão atlântica, durante os anos 70, emergem com um vigor desconhecido anteriormente. O importante aqui, no entanto, é avaliar as possibilidades de novos pólos de cultura contra-hegemônica, histórica e territorialmente referenciados, que se oponham ao pastiche da World Music, homogeneizadora de estilos e ditadora de padrões de consumo e comportamento.


Solano, neste sentido, nos indica caminhos extremamente importantes para o tipo de guerrilha cultural travada, atualmente, por aqueles que militam no front da cultura negra, indígena e popular.


Fabio Nogueira é membro da Comissão Nacional do Círculo Palmarino, Setorial de Negras e Negros do PSOL, e do Diretório Nacional do PSOL.


Via Brasil de fato



Mais poesias de Solano.


CANTO À AMADA


Eu tenho uns versos bonitos
pra cantar pra minha amada
sempre sempre desdobrada
em beleza e formosura

Ontem minha amada estava
dentro da cara da Lua
numa garota da rua
no palhaço da folia

Um dia vi minha amada
nas águas do grande mar
outra vez a encontrei
num belo maracatu

Numa canção ela estava
num samba estava também
estava numa boa pinga
sempre está no meu amor

Eu tenho uns versos bonitos
pra cantar pra minha amada
sempre sempre desdobrada
em beleza e formosura

SOU NEGRO


A Dione Silva


Sou Negro
meus avós foram queimados
pelo sol da África
minh'alma recebeu o batismo dos tambores atabaques, gonguês e agogôs

Contaram-me que meus avós
vieram de Loanda
como mercadoria de baixo preço plantaram cana pro senhor do engenho novo
e fundaram o primeiro Maracatu.

Depois meu avô brigou como um danado nas terras de Zumbi
Era valente como quê
Na capoeira ou na faca
escreveu não leu
o pau comeu
Não foi um pai João
humilde e manso

Mesmo vovó não foi de brincadeira
Na guerra dos Malês
ela se destacou

Na minh'alma ficou
o samba
o batuque
o bamboleio
e o desejo de libertação...

GRAVATA COLORIDA


Quando eu tiver bastante pão
para meus filhos
para minha amada
pros meus amigos
e pros meus vizinhos
quando eu tiver
livros para ler
então eu comprarei
uma gravata colorida
larga
bonita
e darei um laço perfeito
e ficarei mostrando
a minha gravata colorida
a todos os que gostam
de gente engravatada...

TEM GENTE COM FOME



Trem sujo da Leopoldina
correndo correndo
parece dizer
tem gente com fome
tem gente com fome
tem gente com fome

Piiiiii

Estação de Caxias
de novo a dizer
de novo a correr
tem gente com fome
tem gente com fome
tem gente com fome

Vigário Geral
Lucas
Cordovil
Brás de Pina
Penha Circular
Estação da Penha
Olaria
Ramos
Bom Sucesso
Carlos Chagas
Triagem, Mauá
trem sujo da Leopoldina
correndo correndo
parece dzier
tem gente com fome
tem gente com fome
tem gente com fome

Tantas caras tristes
querendo chegar
em algum destino
em algum lugar

Trem sujo da Leopoldina
correndo correndo
parece dizer
tem gente com fome
tem gente com fome
tem gente com fome

Só nas estações
quando vai parando
lentamente começa a dizer
se tem gente com fome
dá de comer
se tem gente com fome
dá de comer
se tem gente com fome
dá de comer

Mas o freio de ar
todo autoritário
manda o trem calar
Psiuuuuuuuuuuu



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